terça-feira, 26 de maio de 2009

Extra ecclesiam nulla salus



[Fotogramas de  de Federico Fellini, 1963]

GUIDO Tu saresti capace di piantare tutto e ricominciare la vita daccapo? Di scegliere una cosa, una cosa sola, e di essere fedele a quella, riuscire a farla diventare la ragione della tua vita. Una cosa che raccolga tutto, che diventi tutto proprio perché è la tua fedeltà che la fa diventare infinita. Saresti capace? (…)

CLAUDIA E tu? Saresti capace? (…)

GUIDO No, questo tipo no, non è capace. Questo vuole prendere tutto, arraffare tutto, non sa rinunciare a niente. Cambia strada ogni giorno perché ha paura di perdere quella giusta, e sta morendo, come dissanguato.

Federico Fellini dizia que este filme não era para entender, que era para sentir, que seria inglório tentar encontrar um fio condutor ou uma filosofia que lhe estivesse subjacente, que era apenas um filme sobre um realizador atormentado e em crise de identidade, enfim, sobre a vida que era para ser vivida e não pensada ou sequer explicada. Este diálogo, no entanto, entre Guido-Mastroianni e Claudia-Cardinale, para mim, contém toda uma filosofia da existência, uma chave de salvação que, por ser impossível de alcançar, ou pelo menos por mim, serve apenas de justificação para todos os nossos comportamentos. Guido dizia ao Cardeal, no início do filme, que não era feliz, ao que este lhe retorquia por que razão pretendia ele ser feliz. Extra ecclesiam nulla salus. Não existe salvação fora da Igreja, dizia-lhe o Cardeal. Não era na Igreja, seguramente, que Fellini procurava a salvação, mas porventura na abnegação e na capacidade de renúncia, e este diálogo é bem esclarecedor a este respeito. Todos somos confrontados com isto diariamente, com esta escolha de caminhos, mas nem todos temos a coragem de escolher apenas um, ou pelo menos em definitivo. Cláudia, na fonte, oferecia-lhe a água purificadora, mas Guido tinha medo. Cláudia repetia-lhe, “Não sabes amar, não sabes amar, não sabes amar”.  E não sabia. Mas salvou-se.

Publicada por Rui Hermenegildo à(s) 20:15 | 4 comentários  
sexta-feira, 22 de maio de 2009

Fernanda, Canse-o



[Este requerimento chegou-me por email, anónimo, e desconfio que viole algum segredo de justiça]

Requerimento a Fernanda

Ó Fernanda, dado
que já estou cansado
do ar teatral
a que ele equivale
em todo o horário
de cada canal,
no noticiário,
no telejornal,
ligando-se ao povo,
do qual ele se afasta,
gastando de novo
a fala já gasta
e a pôr agastado
quem muito se agasta
por ser enganado.
Ó Fernanda, dado
que é tempo de basta,
que já estou cansado
do excesso de carga,
do excesso de banda,
da banda que é larga,
da gente que é branda,
da frase que é ópio,
do estilo que é próprio
para a propaganda,
da falta de estudo,
do tudo que é zero,
dos logros a esmo
e do exagero
que o nega a si mesmo,
do acto que é baço,
do sério que é escasso,
mantendo a mentira,
mantendo a vaidade,
negando a verdade,
que sempre enjoou,
nas pedras que atira,
mas sem que refira
o caos que criou.
Ó Fernanda, dado
que já estou cansado,
que falta paciência,
por ter suportado
em exagerado
o que é aparência.
Ó Fernanda, dado
que já estou cansado,
ao fim e ao cabo,
das farsas que ele faz,
a querer que o diabo
me leve o que ele traz,
ele que é um amigo
de Sao Satanás,
entenda o que eu digo:
Eu já estou cansado!
Sem aviso prévio,
ó Fernanda, prive-o
de ser contestado!
Retire-o do Estado!
Torne-o bem privado!
Ó Fernanda, leve-o!
Traga-nos alívio!
Tenha-o só num pátio
para o seu convívio!
Ó Fernanda, trate-o!
Ó Fernanda, amanse-o!
Ó Fernanda, ate-o!
Ó Fernanda, canse-o!

Publicada por Rui Hermenegildo à(s) 23:41 | 3 comentários  
quinta-feira, 21 de maio de 2009

Princess Tinymeat



Julgava que era o único doido a ter um EP dos Princess Tinymeat, essa banda obscura dos anos oitenta formada por Binttii, uma personagem impossível de existir nos anos zero-zero, em que tudo é uma encenação, e que chegou a integrar os não menos obscuros Virgin Prunes. Mas eis que ontem à tarde, a caminho de casa, a ouvir a Rádio Oxigénio, algo que apenas faço quando o Pedro Ramos entra em delírio, alguém (?) lembrava a música "Angels in Pain". Não resisti e por isso aqui fica. A memória é uma coisa tramada. É o que dá ter sido "gótico", eh, eh.

Publicada por Rui Hermenegildo à(s) 18:26 | 0 comentários  
segunda-feira, 11 de maio de 2009

Este momento



Chavela Vargas, a amiga mexicana, que afinal nasceu e era da Costa Rica, de Pedro Almodóvar, companheira de Frida Khalo e de Diego Rivera, entre outros, acaba de celebrar o seu nonagésimo aniversário.
Em entrevista ao El País Semanal, quando questionada sobre a época da vida com que ficaria se tivesse de o fazer, dispara um categórico "Este momento". E continua, "Sí. Estoy bien. Estoy centrada. No me he desbocado. Ni me siento más de lo que soy, ni menos tampoco. Estoy en un término justo."

Eu também ficava com este momento, obrigado, mas não tenho noventa anos.


Publicada por Rui Hermenegildo à(s) 16:32 | 1 comentários  
quarta-feira, 6 de maio de 2009

O resto é ruído



[Mahler e Strauss à saída da ópera de Grätz em Maio de 1916 numa fotografia de Gilbert Kaplan]


Alex Ross é crítico de música na New Yorker e, em 2008, foi seleccionado "MacArthur Fellow".
Para quem não sabe, os MacArthur Fellowships são atribuídos anualmente pela MacArthur Foundation sob a bastante esclarecedora estratégia de comunicação "Out of the Blue — $500,000 — No Strings attached". Ou seja, todo os anos, entre 20 e 30 pessoas recebem quinhentos mil dólares, sem qualquer compromisso que não seja continuarem a ser eles mesmos. Naturalmente, todos são escolhidos pela sua criatividade e originalidade bem como pelo seu potencial para contribuírem de forma importante para o futuro (sic). Desde 1981 até 2008 foram seleccionados 781 "Fellows" e na longa lista encontramos nomes como Merce Cunningham, Thomas Pynchon, Ornette Coleman, Bill Viola, Mark Strand, Harold Bloom, Susan Sontag, entre outros ilustres mais e menos conhecidos. Desconheço se existe algum estudo sobre o impacto deste programa, mas parece-me óbvio que a taxa de sucesso deverá ser bastante inferior a 100%. Os actos falhados serão seguramente compensados pelos casos de sucesso que serão o equivalente à lotaria de Natal, com a única diferença que a sorte não é um factor determinante.
Alex Ross é um caso de sucesso: para além de reconhecido crítico musical, escreveu em 2007 o livro que me vai ocupar nos próximos tempos: "The rest is noise, Listening to the Twentieth Century". Uma história da música do Século Vinte parece uma tarefa impossível para 600 páginas, mas o livro inicia com um daqueles eventos que marcam a História dos homens e deixa adivinhar que as restantes páginas se irão suceder com o mesmo ritmo que as primeiras 50. Em 16 de Maio de 1906 Richard Strauss dirigiu, pela segunda vez, a sua ópera maldita, Salome, cujo libreto é baseado na peça de Oscar Wilde, na cidade austríaca de Gräz pois os censores imperiais não permitiram que o fizesse em Viena. A esta cidade confluíram personalidades tão importantes para a história da música como Gustav Mahler, Giacomo Puccini, Arnold Schoenberg, Alexander Zemlinsky, Alban Berg e, espantem-se, Adolf Hitler, então com dezassete anos. Segundo Alex Ross, Hitler teria confidenciado mais tarde ao filho de Strauss que tinha pedido dinheiro emprestado a familiares para fazer a viagem, mas a sua presença é, no entanto, apresentada como uma mera hipótese. Factos à parte, esta récita fundadora é o ponto de partida para uma viagem que apenas terminará com os ainda recentes anos 90 do século passado.
Quando a Salome foi apresentada pela primeira vez em Nova Iorque, depois da perturbante dança dos sete véus a filha de JP Morgan fez com que os restantes espectáculos fossem cancelados. Em baixo podemos ver uma récita na Opéra de Paris, em 2003, 96 anos depois de Nova Iorque, em que a conhecida soprano Karita Mattila se despe no final da demoníaca e sensual dança. A história da música, como a nossa história, é feita destas contradições.
Como todos sabemos, no final, Herodes manda matar Salome depois desta beijar os lábios da cabeça de João Baptista que lhe foi entregue numa bandeja de prata.


Publicada por Rui Hermenegildo à(s) 04:52 | 0 comentários  
sexta-feira, 1 de maio de 2009

Quem tem uma pergunta?*




Apesar de europeísta por convicção, a relação da União Europeia com os seus cidadãos recorda-me a história que Jean-Claude Carrièrre regista na sua Tertúlia de Mentirosos, a propósito de um eremita cristão, com os pés em sangue e a cabeça a arder pelo sol que corria sem destino pela areia e gritava a todos os ecos do deserto, “Tenho uma resposta! Tenho uma resposta! Quem tem uma pergunta?”
Enquanto os cidadãos europeus não se levarem a sério nesta qualidade e não utilizarem o principal instrumento de influência de que dispõem, os partidos políticos continuarão a assobiar para o lado e a cidadania europeia não deixará de ser, nesta medida, mais do que um mero expediente burocrático destinado a conferir uma aparência de legitimidade a um sistema político que carece desesperadamente de mais participação cívica e democrática. Mais do que uma pergunta, os cidadãos europeus deveriam ser convidados a apresentar uma resposta, mas para isso, no dia 7 de Junho, não se podem demitir das suas responsabilidades.

* Artigo sobre as eleições europeias para continuar a ler no próximo número da Revista Obscena que será apresentado na Livraria Trama, na próxima 3.ª-feira, dia 5 de Maio, o meu mês.
Publicada por Rui Hermenegildo à(s) 00:10 | 0 comentários  
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name: Rui Hermenegildo

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